O Perene e o Efémero
Se pediu uma bebida nos quiosques da expo em 98 ou na Casa de Chá do castelo de Montemor-o-Velho, se visitou o Centro de Artes Visuais de Coimbra ou viu os cenários de Propriedade Privada de Olga Roriz, esteve perante a arquitectura de um mesmo autor: João Mendes Ribeiro, natural de Coimbra que estudou na Faculdade de Arquitectura da ESBAP, no Porto. JMR vive a sua profissão de uma forma particular e intensa, entre projectos de raíz, obras de recuperação, objectos ou cenários para teatro e dança. Visitámos um palheiro transformado em habitação, obra sua que serviu de pretexto para falar sobre as suas ideias para esta casa, sobre a especificidade de um projecto de recuperação e sobre as intersecções entre a sua actividade de arquitecto e de cenógrafo. Tem 44 anos, integra a representação portuguesa na Bienal de Veneza e possui, tal como os cenários que desenha, um carácter multifacetado.
Um dia e curiosamente por recomendação de um arquitecto com quem trabalhou – Fernando Pinto Coelho – telefonou-lhe a cliente…
Foi, e disse-me que achava que eu era a pessoa indicada para recuperar um edifício agrícola que tinha em Cortegaça. Tratava-se de um conjunto articulado de construções de várias épocas e obedecendo a lógicas diferentes: uma adega, uma casa de habitação e a Sul, junto à eira, o edifício a recuperar: um palheiro em ruínas.
Já havia a ideia de transformar o palheiro numa habitação ou era uma questão em aberto?
A cliente já tinha a intenção de fazer uma pequena habitação para ai se poder reunir com os amigos. Era acima de tudo um pretexto para recuperar o palheiro. Inicialmente a sua ideia era unir o palheiro à casa principal através de um volume contendo várias salas. Achei que isso não faria sentido pois na casa principal existiam já muitos quartos e salas e propus um percurso de ligação que constituísse uma espécie de corredor-garrafeira. Seria uma ligação dissimulada e que assegurasse a autonomia das construções.
Sendo estas obras de recuperação mais caras e complexas, nunca pensaram demolir o palheiro e, como muitos fariam, construir no seu lugar um edifício inteiramente novo respeitando apenas a volumetria antiga?
Não, porque achámos sempre que o palheiro, embora sendo um espaço condicionado e de pequena escala, possuía inúmeras qualidades: era interessante como equipamento agrícola, não só em termos dos sistemas construtivos e da composição mas também em termos de espaço interior. Gostei da sua implantação e do modo como se relacionava com a casa principal, com a quinta e com a paisagem envolvente. Era um edifício modesto, mas com muitas qualidades (melhor que muitas construções recentes).
Como surgiu esta ideia de construção mista de xisto e madeira?
Na construção original predominavam dois materiais: o xisto, na parede a Norte, e uma solução mista de madeira e xisto na fachada voltada a Sul. A justaposição de materiais leves e transparentes, e pesados e opacos era um dado preexistente. E esse foi então um dos temas de projecto. Procedeu-se também à recuperação das estruturas de suporte da cobertura que, embora substituídas porque irrecuperáveis, mantêm a lógica das originais.
Afinal o que foi demolido?
Aquilo que dificultava a clarificação da estrutura espacial ou que estava muito degradado. A ideia foi manter as características estruturais e formais do edifício, introduzindo no entanto, uma ruptura, com a escala, na sala de pé direito duplo. Não houve qualquer abertura ou demolição das paredes para além da passagem central entre as salas do piso térreo. Tudo existia. No fundo tratou-se de fazer uma avaliação do que existia, introduzindo em alguns casos uma nova linguagem.
Uma das dificuldades dos projectos de recuperação é eleger aquilo que permanece, o que se deve demolir, etc… No limite, todas as partes são antigas, importantes. Como é que faz essa escolha?
É muitas vezes um processo intuitivo. Tento sobretudo saber olhar, perceber o que é estruturante, entender os sistemas construtivos, a organização e tipologia do edifício, e depois inserir o programa funcional realizando apenas as intervenções absolutamente necessárias para cumprir as novas necessidades.
Quais são as mais-valias de um projecto de recuperação relativamente a um edifício novo?
Aquilo que me parece mais importante e estimulante é a existência de regras muito claras e a possibilidade de trabalhar uma estrutura preexistente acrescentando-lhe matérias novas.
Mas trabalhar com essas regras não pode tornar-se uma limitação à criatividade?
Antes pelo contrário, a existência dessas regras permite evoluir depressa e obter resultados bastante interessantes. E este foi o caso, dado que não possuía grandes imposições de programa e entendi muito rapidamente o que tinha de fazer.
Ganha-se também complexidade com a justaposição de tempos diferentes…
Isso é muito interessante. O facto de trabalhar uma construção agrícola, uma peça de pequena escala, onde às referências do mundo rural, como por exemplo os lavatórios dentro dos quartos, como existia na casa do meu avô, acrescento outros modelos decorrentes de uma arquitectura urbana contemporânea. Isso observa-se também em aspectos como a mezanine, o pé-direito duplo da sala, ou no modo como são desenhados os sanitários. Outro aspecto interessante é a utilização de materiais tradicionais, actualmente em desuso, como o óxido de ferro misturado nas argamassas que confere um tom encarnado muito bonito. São soluções que se perderam mas que eram utilizadas até há pouco tempo na arquitectura tradicional. Neste projecto, essas soluções são utilizadas para criar uma imagem contemporânea.
Falando um pouco do modo como a casa se vê do exterior: qual era a sua intenção com este ripado virado para sudoeste.
O que existia era um plano de madeira onde aparentemente não havia portas nem janelas (estavam dissimuladas na fachada). Foi essa imagem um pouco abstracta que me agradou e que quis reter no projecto: um plano onde não se tem uma ideia exacta da dimensão dos vãos. Por outro lado era necessário filtrar a luz neste alçado fortemente exposto ao sol. A casa deveria funcionar como uma espécie de casa-de-fresco – espaço interior com uma forte comunicação com o exterior –, com um ripado fixo semelhante ao dos espigueiros através do qual passam linhas de luz. As janelas atrás do ripado abrem-se permitindo ventilar a sala que assim funciona como um espaço exterior.
Como foram pensados os espaços exteriores em volta da casa?
Foi um trabalho conjunto com a arquitecta paisagista Teresa Alfaiate. O limite da propriedade será reconstruído sob a forma de muros de xisto, criando uma plataforma de assentamento da casa que hoje se encontra demasiado exposta. No lado Sul serão plantadas árvores de grande porte para criar sombra. Nesse lado existia uma antiga eira em lajedo de pedra que queremos recuperar como prolongamento exterior da sala de jantar. Essa eira era protegida da rua por um espigueiro que queremos repor, para funcionar como peça de fecho daquele espaço.
Há no modo como avalia o papel do espigueiro, mas também, no aspecto aparentemente transitório ou efémero de algumas soluções dos seus projectos, reflexos da sua experiência como cenógrafo de espectáculos de palco?
Eventualmente. As duas actividades não são estanques, há níveis de intersecção. Mas apesar de a cenografia e a arquitectura serem duas disciplinas distintas, a verdade é que em termos de metodologia de trabalho não encontro grandes diferenças.
Mas quais serão essas diferenças?
As principais diferenças decorrem da perenidade da arquitectura em contraste com o carácter efémero da cenografia. Outro aspecto que distingue os processos de concepção em arquitectura e em cenografia, é por, um lado o tempo/ritmo e por outro a proximidade entre o atelier (projecto) e a oficina (construção/experimentação). Em cenografia, testar as soluções na oficina é simultâneo com o acto de projectar. Inicialmente desenhava o projecto completo e só depois me envolvia com a construção, na oficina. Com a experiência percebi que essa não era a metodologia mais adequada, pois tinha muito a aprender com os técnicos do teatro e passei a testar com eles as soluções, antes de concluir os desenhos. A verdade é que o trabalho de cenografia tem um carácter muito mais experimental resultante dessa forte articulação entre atelier e oficina. Num projecto de arquitectura, tudo tem de ser previamente definido no estirador.
E em que difere pensar um espaço arquitectónico ou um cenário para teatro ou dança?
Quando faço arquitectura penso mais na relação do meu próprio corpo com o espaço, como um corpo abstracto. Quando concebo cenografias penso em função dos corpos dos intérpretes. O diálogo que eu tenho com os intérpretes, que vão habitar o espaço cénico, é naturalmente mais intenso e personalizado. Mas a relação que crio entre o espaço, os objectos cénicos e os actores é em boa medida ditada pelo guião e nisso difere da arquitectura. Embora no caso do palheiro houvesse um “guião”, (a preexistência e o objectivo de a recuperar), frequentemente isso não acontece: muitas vezes há um relativo desfasamento entre as intenções dos interlocutores. Na arquitectura, em cada projecto conhece-se um novo cliente e parte-se um pouco do zero. No teatro e na dança tenho tido a oportunidade de trabalhar repetidas vezes com as mesmas pessoas e por isso já existe um entendimento e uma cumplicidade que permitem partir facilmente para situações experimentais.
Nos seus 1ºs trabalhos em cenografia esse sentido experimental não existia?
Quando desenhei a primeira cenografia, as dúvidas levaram-me a “jogar” pelo seguro e a trabalhar com aquilo que conhecia. Depois fui sendo “contaminado” por outras áreas artísticas e acabei por desenvolver um tipo de experiências nas quais se reconhecem uma série de pontos de contacto com a arquitectura.
Há coisas que faz quando trabalha para o palco do Teatro que depois transporta para o palco real da vida das pessoas?
Directamente não, mas pelo facto de fazer mais trabalhos de cenografia acumulo uma série de experiências que me levam a descobertas úteis em termos operativos e conceptuais também nos projectos de arquitectura. Quando fiz os quiosques da Expo 98 e os apresentei ao arquitecto Manuel Salgado no período de avaliação, expus-lhe a minha solução que possuía diversos mecanismos aparentemente complexos e inexequíveis. Perante a dúvida se não seria uma solução demasiado complicada, eu convenci o júri mostrando-lhes alguns cenários com mecanismos semelhantes que tinha feito para a Olga Roriz. No projecto que desenvolvi para Rivoli em Turim, pode verificar-se uma forte ligação em termos conceptuais da arquitectura com a dança. Como se tratava de desenhar uma escada mecânica, uma espécie de condutor de espaço que levava as pessoas de um ponto para outro, construí uma “arquitectura de movimento”. Um espaço contínuo e orientado, funcionando como um somatório de acções e reacções ritmadas e intensas, construído a partir dos deslocamentos. Os temas e a terminologia que utilizei provem da dança, como a noção de movimento condicionado – a dança é quase sempre feita de gestos ensaiados, de espaçamento, de respiração, tensão e ritmo. Neste projecto desenvolveu-se uma dicotomia entre espaço-movimento-acontecimento.
Para si os cenários são o lugar gerador da acção ou onde a acção se desenrola?
Ficaria muito triste se não fossem impulsionadores da acção… Os meus cenários são normalmente objectos multifuncionais que se transformam e que necessitam da intervenção dos actores para serem entendidos. É a partir do movimento dos actores que são reconhecidos e adquirem sentido.
Houve casos em que essa interacção “revelou“ um potencial multifuncional dos cenários surpreendente?
Por exemplo em Propriedade Privada, que fiz com a Olga Roriz. Foi uma cenografia difícil pois para além de ter sido o primeiro trabalho que fizemos juntos vivia muito do trabalho da Olga com os bailarinos. Era um objecto apropriável de diversas maneiras e nunca conseguimos esgotar todas as situações que aquele mesmo cenário poderia proporcionar. Foram feitos três espectáculos diferentes utilizando o mesmo objecto em que este era simplesmente disposto perante o público de maneira diferente, configurando cenografias distintas.
O carácter económico ou abstracto de uma cenografia pode ser bastante interessante. Por exemplo em Dogville – filme de Lars von Trier – toda a acção se passa num mesmo espaço: um plateau onde casas e ruas são linhas traçadas no chão e existe apenas um número mínimo de objectos. É a partir destes elementos que construímos mentalmente uma ideia de aldeia.
Há formas muito económicas ou simbólicas de sugerir coisas. Em “Uma Visitação”, com uma peça única que se desdobrava de diversas maneiras, tentei recriar simbolicamente vários espaços/situações distintas. Por exemplo, quando ela tomava a forma de escada, sugeria a existência de uma elevação, num espaço exterior que efectivamente não estava construído. Também na cenografia de “Pedro e Inês” o cenário é marcado por uma arquitectura voluntariamente minimal: no palco vazio existe apenas uma plataforma ligeiramente elevada. Este dispositivo delimita, por um lado, o espaço concreto da acção e simultaneamente contem – esconde e revela – os diversos objectos cenográficos utilizados ao longo da actuação. De maneira paradoxal reproduz-se em palco um espaço exterior – a Fonte dos Amores da Quinta das Lágrimas. O efeito de ilusão é ainda reforçado pela utilização de materiais orgânicos concretos, reais, como água e terra, fora do seu contexto natural. No entanto, por muito que queiramos estabelecer uma ligação entre o cenário e o referencial físico concreto, o que permanece é uma ideia conceptual do mundo exterior reinterpretado cenograficamente dentro do palco.
Na sua arquitectura há sempre um sentido analítico e uma procura de sínteses, uma redução ao essencial?
A procura do essencial, de uma clarificação estruturante, eu diria que sim. Mas depois tenho sempre vontade de acrescentar algo mais e por vezes de um certo expressionismo. A possibilidade de transformação, e a flexibilidade na arquitectura é algo que gosto muito de explorar. Mas há sempre uma procura de coisas que, à partida, não são muito imediatas nem evidentes.
(*) Texto escrito por José Mateus para a revista Linha 3