Palco para a Vida
João Luis Carrilho da Graça é o arquitecto-referência de Lisboa. Obras como a Escola Superior de Comunicação Social, o Pavilhão do Conhecimento dos Mares ou a recente extensão do Palácio de Belém, são alguns dos pontos altos da sua carreira. O projecto da casa do artista plástico Julião Sarmento, feito em parceria com a arquitecta Anne Demoustier, foi o ponto de partida para uma conversa sobre a difícil arquitectura das casas privadas e sobre o seu poder transformador da vida das pessoas. Apesar da extraordinária coerência do seu percurso, afirma com convicção: “O mais interessante, é não procurar qualquer vinculação a um determinado tipo de vocabulário”.
Como começou o Projecto? Já conhecia pessoalmente os donos da casa?
Conhecia a Isabel e o Julião de três ou quatro ocasiões mais ou menos públicas.
Quando fui convidado para intervir na casa, a missão que tinha era fazer apenas a piscina e a casa do cão. E achei imensa graça. Fui lá e pareceu-me que era interessante fazer a piscina numa cota alta, ao lado da casa, essencialmente porque tem uma melhor insolação e depois porque me incomodava na casa o divórcio quase completo que tinha com os espaços do jardim. A casa tinha uma série de pisos, muito mal relacionados com os espaços exteriores e acabava por funcionar quase como um edifício de apartamentos. A posição da piscina estrategicamente localizada junto da casa – embora não se tenha realizado o projecto inicial – e as possibilidades de ligação que ela depois sugeria, foram um ponto de partida de uma reorganização da casa.
Como era a piscina inicial?
O conceito à partida era o mesmo – um paralelipípedo de aço cor-ten que contém a água. Depois havia uma série de situações, aparentemente de detalhe, mas que eram bastante diferentes: um jogo muito intencional e delicado com a estrutura, o tipo de pedras e a pormenorização. Havia ainda um balneário ao lado que tinha luz zenital, um chuveiro enorme, etc. Foi de facto um dos espaços que gostei de desenhar porque era muito intencional, muito forte. A ideia era criar uma espécie de palco um pouco elevado em que os corpos tinham uma presença quase como num espaço teatral. Depois, quando se pediram orçamentos aos empreiteiros, o preço era excessivo e houve que optar por técnicas mais práticas e o balneário desapareceu.
Como surgiu essa ideia de caixa?
Quando fui lá da primeira vez, o jardim era mais uma espécie de floresta. Tinha um ar romântico e havia um ambiente fortíssimo com árvores frondosas e com uma sensação incrível de abandono. Quando pensei na piscina com aquele formato, era quase como se fosse um daqueles túmulos que se encontram romanticamente abandonados no meio da floresta que são duas pedras, ou qualquer outro objecto arquitectónico um bocado deslocado. Uma discussão muito interessante que tivémos foi relativamente à cor interior da piscina. Tinha uma maquete em que tinha pintado cor de laranja e a reacção do Julião foi imediata e directa “para mim uma piscina é como as do David Hockney, azul”.
Não sei se é muito atraente tomar banho numa água cor de laranja…
Não faço idéia, mas naquele contexto parecia-me particularmente atraente. Mas quando penso numa coisa destas é uma mera hipótese, não se trata de um facto incontornável, e a reacção do Julião tornou-se decisiva.
Dá a sensação que não havia um programa definido. A própria vontade de alterar a casa foi aparecendo aos poucos.
As coisas foram estudadas um bocado fragmentariamente, partindo de pequenas intervenções que foram ajudando a relacionar a casa com o exterior e depois a reconstrui-la interiormente para criar uma certa unidade.
Os espaços cá de baixo, que no contexto da casa estavam relativamente secundarizados, estavam a precisar de intervenção profunda. Pensou-se então na criação de um grande espaço conjunto, para onde passaram a sala de refeições, o quarto dos amigos e a cozinha, o que fez com que a relação da casa com o exterior ganhasse uma importância particular.
Parece que materialmente pouco se fez mas realmente deu-se uma profundíssima metamorfose de todo aquele espaço da casa que mudou mesmo radicalmente.
Há aspectos de uma certa estranheza. Por exemplo num dos poucos sinais exteriores, o pequeno portão negro e o espaço de entrada para a cozinha.
Eu gosto bastante do pequeno portão porque quando se abre, subitamente surge a entrada na cozinha que parece funcionar independente da casa e tem um ar de quase desmontar aquele volume. Depois existe o espaço entre a casa e a cerca: uma espécie de caixa de madeira. É como se fosse um pátio mas que não é um vazio dentro de uma massa – como normalmente são os pátios – é um vazio dentro de um vazio, que não houve interesse em fechar. O que se tenta criar é uma sensação de interioridade através do material que é sempre a madeira, mas só com os elementos indispensáveis.
Tratando-se os clientes de uma pessoa formada em psicologia e de um artista plástico, quais as particularidades desse processo?
Este era um caso particular. Neste Projecto tinha-se o objectivo de fazer, em certos aspectos, quase uma casa ideal, porque se tem obras de arte e mobiliário fabulosas, um espaço que eu por exemplo não tenho na minha casa, têm-se à partida uma série de condições previlegiadas. Um dos aspectos mais importantes para além da relação com o exterior era prepará-la para servir de pano de fundo para essa colecção de obras de arte. E houve conversas muito interessantes, por exemplo, sobre a estante da sala porque o Julião acaba por ser quase em certos aspectos mais radical do que eu relativamente à arquitectura. Por vezes eu ficava surpreendido com coisas que ele dizia.
Em que sentido?
A estante não devia ter muita presença e por isso as prateleiras eram só tábuas horizontais e verticais. Quando foi colocada no sítio o Julião disse “então o fundo não é de madeira?” E eu disse “não, é a parede. É a coisa mais simples que se pode fazer” e ele disse “mas eu gostava ainda mais simples. Se o fundo for de madeira temos uma só matéria que constrói tudo”. E eu dei-lhe razão.
Uma vez fez-me subir a escada de uma ponta à outra e chamou-me a atenção para dois pormenores incongruentes com a lógica de desenho da guarda. Eu achei espantoso porque acho que sou muito picuinhas, que levo tudo até às últimas consequências não só em termos de pormenor e conceito e depois de realização e ali encontrei um cliente extraordinariamente rigoroso que não só aceitava entrar no jogo mas que tinha uma exigência de coerência ainda maior que a minha.
Havia então uma disponibilidade mental dos donos da casa e uma curiosidade acrescidas resultante da sua formação?
Exacto. Em relação às profissões ou áreas artisticas? Em relação ao carácter um pouco “formal” da casa como ela estava antes da intervenção isso não passa de um ponto de partida. Ainda ontem vi uma exposição fabulosa da Helena Almeida (Pés no Chão, Cabeça no Céu), e tive quase uma espécie de choque porque me lembrava intensamente os bailados de Pina Baush. Recentemente vi uma reportagem no canal Arte com um dos bailarinos de Pina Baush, em que ele dava uma série de explicações sobre o trabalho. Tive a sensação fortíssima de estar quase na mesma área artística ou estética. O que acho muito curioso na dança de Pina Baush é que se se reparar de uma maneira directa em muitas das peças, eles estão vestidos de uma maneira quase formal ou comum mas subvertem completamente essa primeira leitura através da intensidade daquilo que se está a passar e que nos querem transmitir. É assim um bocado o que eu sinto por aquela casa.
Como se relaciona uma coisa com a outra?
Aquela arquitectura “português suave”, perfeitamente codificada com um conjunto de aspectos linguísticos que à primeira vista nos custaria aceitar, mas que depois podem ser deslocados para um espaço de significação completamente diferente através de pequenas intervenções e da introdução de uma espécie de alma interior da casa. Foi o que nós tentámos fazer. E eu acho que é nesta área que a casa se pode construir respondendo a padrões que são ao mesmo tempo de conforto e que têm um sentido clássico, porque são coisas aceites comumente, mas depois podem ser subvertidas através de outros sinais que foram fazendo de certa maneira cintilar aquele espaço.
Este tipo de projectos tem sempre dificuldades impostas pelas pré-existências.
Em qualquer intervenção que se faça tem-se sempre algumas existências com as quais se tem de dialogar, mas quando se passa para o interior da casa há uma espécie de luta corpo-a-corpo. Lembro-me que quando fui lá numa das primeiras vezes, eles estavam a instalar-se na casa depois de terem feito algumas obras de conservação. Quando começaram a colocar o mobiliário e quadros na parede, eu francamente tinha a sensação que havia ali um certo desacerto entre o peso excessivo do ponto de vista linguístico da pré-existência e uma certa contradição com um conteúdo que não tinha ainda força de contraposição suficiente. Esta intervenção que nós fizemos já cria uma espécie de equilíbrio ideal muito mais assumido e claro, por ter subvertido uma série de sinais existentes, por ter apagado uns e revelado outros, por ter introduzido uma outra teoria, uma outra alma. Quase que se poderia imaginar como um desenho em que permanentemente se apagava e escrevinhava, que servia como guião do princípio ao fim, com diversas emendas e sobreposições. Mas parece-me nitidamente que se criou o espaço para que a presença das obras de arte, da relação interior-exterior e da vida funcionem de uma maneira bastante equilibrada e interessante.
Há arquitectos que caem em exercícios para o próprio umbigo, que os leva a cair em situações que forçam a vida das pessoas para além do razoável?
Eu acho que isso é uma espécie de “pecado” ao qual nenhum arquitecto consegue escapar por mais boa vontade que tenha. Parece-me fundamental que o arquitecto, quando está a fazer um projecto, imagine que o está a fazer para si próprio, como se fosse viver nele. E que o teste permanentemente em relação às sensações que o resultado pode vir a transmitir e a maneira como pode viver dentro dele. E se encarar isto com este tipo de seriedade, o resultado é forçosamente positivo. Mas há sempre momentos em que existe um desajuste, que esperamos não muito grande, entre as ambições que nós tinhamos e o que na realidade elas comportam de capacidade de suporte para a vida das pessoas.
De algum modo a sua arquitectura só é acessivel a uma certa elite?
Penso que em relação a isso nós temos de ser realistas. Por exemplo, nós gostamos imenso do design enquanto conseguimos conferir um sentido quase heróico: desenhar bem objectos adequados e belos que as pessoas possam comprar. Isso cria uma espécie de função social ao design. E eu penso que com a arquitectura é exactamente a mesma coisa. A arquitectura pode cumprir essa função social mas de uma maneira realista. Se tivermos que construir casas para pessoas com poucos recursos nós temos que, mesmo que seja através de processos de industrialização, tentar atingir esse objectivo. Gosto muito daquela ideia do Rem Khoolhaas (arquitecto da Casa da Música) de que nós temos de ir mais longe na investigação de como é que se produz a arquitectura para que depois ela surja como uma espécie de produto que possa ser desejável olhando para ele. Não colocar sempre a arquitectura na dependência da procura: o milionário que quer fazer uma casa, etc. Se nos contratarem para desenhar mil casas, então desenhemos essas casas de uma maneira adequada para se construir uma coisa que eventualmente neste momento é difícil encontrar em Lisboa, ou até mesmo Portugal: casas relativamente banais mas em que se viva bem. Eu muitas vezes pergunto: numa cidade como Lisboa que é fabulosa, lindissima, onde é que estão as casas verdadeiramente invejáveis?
No nosso país, 95% das casas são de uma grande vulgaridade e as pessoas não se apercebem disso. A maior parte das pessoas não faz idéia de que poderia viver muito melhor, gastando o mesmo dinheiro. Paradoxalmente é o bem mais caro que possuem…
Não só são de uma grande vulgaridade mas também são más naquilo que se pode quantificar: o modo como estão isoladas, construidas, mobiladas, desinteressantes e continuam a multiplicar-se. É estranho porque havia a obrigação, sendo as pessoas aparentemente mais informadas, de as coisas se processarem de outra maneira. Nós reconhecemos que a indústria produz objectos belos, equilibrados, a custos perfeitamente razoáveis, sempre a evoluir. Há uma coisa que refiro muitas vezes que é a indústria automóvel. Quanto se compra um carro sabe-se exactamente as suas performances, quanto gasta, velocidade máxima, e sabe-se que aquilo está tudo relativamente optimizado. Quando se compra uma casa, não se faz a minima ideia de quase nenhuma aspecto que se podia quantificar que poderia ter a ver com a performance da casa, não só em termos de construção mas sobretudo sobre a sua utilização ao longo dos anos. Há revistas da especialidade que fazem análises perfeitas aos automóveis mas não há nenhuma que faça uma análise nesses termos àquilo que se constrói. Há aqui um campo de reflexão bastante urgente e importante.
Neste projecto há uma grande preocupação de ligação a um léxico próprio, ou procura a especificidade deste exercício com as perspectivas que pode abrir?
Eu tenho sempre uma relação muito natural com isso. Ao fim de alguns projectos no início da minha carreira, comecei a reparar que havia algumas formas recorrentes. E isso ao contrário de me parecer interessante e positivo, porque podia ter a ver com a possibilidade de ter adquirido um estilo próprio, incomodava-me extraordinariamente. Parecia-me estranho que as mesmas formas conseguissem resolver coisas tão diferentes, por vezes afastadas milhares de quilometros e com programas quase opostos. Eu não procuro, de certeza artificialmente, uma qualquer forma de coerência. Se a coerência existir é uma coisa que tem de ser interna, um reflexo e não um objectivo que se construa. Eu até quase diria que tenho mais vontade de fugir a essas evidências do que construi-las. O mais interessante é não procurar mesmo qualquer sinal de vinculação a um determinado tipo de vocabulário.
O discurso da beleza e da capacidade que a arquitectura tem de regenerar a vida das pessoas, não parece muito valorizado por alguns arquitectos da primeira linha…
Eu acho que até é um dos aspectos fundamentais. Não tem é que ser encarado duma maneira que se relaciona só com o conforto e com aspectos que nós podemos chamar pequeno-burgueses da vida, mas com aspectos mais fundamentais. O mundo é extremamente desconfortável e a arquitectura é confortável num sentido mesmo lato e ontológico. Nós estamos sempre em desacordo com as condições de vida do universo. Há sempre uma certa luta entre aspectos que contribuem para a harmonia e os que a destróem permanentemente. Acho que a arquitectura tem necessariamente de pertencer ao universo do que reconstrói permanentemente o mundo no sentido de o humanizar. Eu acredito que o papel da arte, e da arquitectura que está nela incluída, é precisamente esse: o de humanizar o mundo, de conseguir reequilibrá-lo e torná-lo mais humano, sem caricaturizar.
Não é feita só em função disso mas não pode deixar de passar por isso…
Se encararmos a arquitectura de uma maneira mais genérica, acho que aquilo que acabo de dizer, se for entendido num sentido lato, é exactamente a razão de ser e o objectivo do nosso trabalho. É aí que está a nossa dimensão profissional.
(*) por José Mateus para a revista Linha 2