Da Realidade-Real ao ARX Arquivo

Texto de Paula Melâneo

Em 1993, o panorama do ensino da arquitectura na Faculdade de Arquitectura da Universidade Técnica de Lisboa era dominado por professores que se dividiam nos ensinamentos de uma possível arquitectura portuguesa (sempre o encalço de Siza Vieira), outros que ainda professavam o pós-modernismo (e os feitos rebuscados de Stirling ou Graves) e alguns — poucos — “mais-à-frente”, falavam de desconstrutivismo e Derrida, mostrando a obra de Zaha, Tshumi, Eisenman ou Libeskind.
Em 1993, o então polémico Cento Cultural de Belém abria as suas portas e exibia Realidade-Real, uma exposição do trabalho de ARX-Portugal — o atelier dos irmãos José e Nuno Mateus, com apenas 2 anos de obra concluída. Em 1993, foi inspirador e marcante para quem, como eu, estava no 1º ano de arquitectura, ver a exposição Realidade-Real. Era Realmente diferente — Nuno tinha trabalhado com Eisenman e Libeskind, e José também com Libeskind, e traziam consigo uma nova maneira de ver a arquitectura — até no modo de expor, do que se fazia — e falava — por cá!
Passaram 20 anos e o atelier voltou ao CCB com a exposição ARX arquivo, para — literalmente — preencher a Garagem Sul. Este espaço, inaugurado recentemente, tem cerca de 2.100 m2 e é dedicado a exposições de Arquitectura. Esta é a primeira pensada especificamente para a Garagem Sul, cuja superfície é ocupada por uma imensidão de caixas, 241 ao todo, que contêm mais de 1.500 maquetes. Um painel de imagens com 64 metros estende-se numa das paredes e 5 filmes são projectados na parede oposta. A curadoria foi feita pelo arquitecto e crítico Luís Santiago Baptista, que contextualiza esta exposição numa visão arquivística. E este é um Arquivo real: todas as maquetes estavam no atelier, não houve a sua produção propositada. A exposição pode tornar-se assim num dispositivo útil, que se constitui como continuidade do trabalho de atelier, um pretexto para o espólio ser organizado e catalogado, um arquivo em aberto.
ARX Arquivo é também o resultado de um processo de investigação de mais de dois anos e meio que o curador faz junto do atelier para uma monografia; é a abertura  dos dois arquitectos a diversas interrogações sobre a sua prática e é a descoberta da singularidade do seu trabalho, que se reflete no próprio dispositivo expositivo.

Organizada em três níveis de leitura sintética, a visita pode ser feita segundo 3 percursos principais e complementares:
O GABINETE DE CURISODIDADES, é o percurso central seguindo uma linha temporal que nos faz viajar entre “estratos arqueológicos”, do presente para o passado, na imensidão de maquetes. Podemos acompanhar a exaustiva evolução do projecto, desde as fases embrionárias formais, onde um papel dobrado mostra a intenção, as hesitações, avanços e recuos, ou já explorando partes do edifício e estratégias construtivas. Esta coleção “quase obsessiva” de objectos conta-nos afinal a génese projectual de uma obra, do seu processo mental e criativo. O mesmo percurso pode ser abreviado, seguindo apenas as obras que chegaram à fase de construção, identificadas pontualmente pelas maquetes em destaque, suspensas das caixas. É referida a conotação directa com o Curiosity Cabinet ou Wunderkammer do séc. XVII, o inicio de uma tentativa de sistematização de objectos e evidências colecionados que antecede a lógica do museu, cruzando disciplinas e universos diferenciados. Outra analogia, aos “gabinetes” dos naturalistas e do evolucionismo biológico, onde se observa a evolução das espécies e a selecção natural ou o apuramento da resposta face às mais diversas circunstâncias. A classificação é visível na nomenclatura das caixas, pintada através de stencils, permitindo-nos uma orientação do tipo de trabalho — concurso, desenvolvimento de fases de projecto ou construção. O conteúdo deste Arquivo é integral, sem filtros, e por isso há também caixas fechadas com maquetes que são frutos de processos inconclusivos. Destacam-se dois projectos pelo número de maquetes apresentadas, distribuídas pelos alinhamentos de caixas. Um é o Fórum Sintra, onde vemos como foram exploradas as diversas escalas, desde a inserção no local, as relações espaciais, a estrutura, até à sinalética. Também a ampliação do Museu Marítimo de Ílhavo torna evidente o uso do instrumento maquete como metodologia de investigação de ARX para a evolução projetual e não como mera apresentação final.

O ATLAS de imagens organizado pelo curador, faz referência ao Atlas de Aby Warburg, onde a junção de imagens não previsíveis pode fornecer novos elementos à narrativa e uma outra perspectiva. São afixadas imagens de produção do atelier — esquiços, desenhos técnicos, diagramas ou fotografias — e que cruzam com várias outras imagens, fornecendo novas chaves de leitura, como os desenhos anatómicos de Vesalius, a “boîte-en-valise” de Duchamp ou as fotografias de plantas Karl Blossfeldt ou a referência ao extensivo levantamento das torres-depósito de água de Bernd e Hilla Becher. Num dos extremos do painel, o baixo-relevo do “Erro de Ouro” de Nuno Mateus, levanta a questão da possibilidade do erro face à suposta perfeição do número de ouro, uma proporção tão cara aos arquitectos.Conjuntos de duas fotografias de obra vão marcando o Atlas e aparecem no alinhamento das maquetes elevadas das caixas. Foram escolhidas pelos dois arquitectos para apresentar essa mesma obra construída, fazendo a conexão direta ao Gabinete de Curiosidades.

E o CINEMA, outro instrumento de documentação arquivística, traz a vivência da obra construída, a sua apropriação e habitar, e responde à questão da maneira de representar a obra construída, o fim primeiro ou objetivo principal da disciplina. Cinco edifícios recentes, de tipologias diferentes e de acesso público — Aquário Museu Marítimo de Ílhavo, a Escola Secundária de Caneças, Fórum Sintra, Conservatório  de Música de Cascais e Centro Regional de Sangue de Coimbra — , já em utilização, foram retratados através dos filmes realizados pelo arquitecto e realizador Carlos Gomes. As paisagens sonoras dão corpo a essa experiência, as imagens intercalam-se com as maquetes dos edifícios.

Expor arquitetura é um tema de debate que vai desde a impossibilidade de transporte da grande maioria dos objetos, à especificidade dos próprios conteúdos — investigações, antologias, monografias, sitespecific, performativas, escala 1:1, edição, etc.
O atelier Aires Mateus Arquietctos, tinha já marcado o panorama nacional de exposições monográficas com Aires Mateus: arquitetura no CCB em 2005, mas de características completamente distintas, onde se valorizava o aspecto cenográfico da própria exposição e experiência direta do espaço arquitetónico. Surpreendente, ARX Arquivo também foge às fórmulas mais comum e confortáveis de expor, centrando-se no objecto maquete, que aqui não é mostrado enquanto objeto escultórico ou artístico, nem mesmo pela sua qualidade de execução e perfeição. São objetos de trabalho e muitos foram usados para serem analisados em obra. “Esta exposição é como entrar na cabeça do arquiteto!”, como referem os irmãos Nuno e José Mateus. É o reflexo do intenso trabalho de pesquisa e do tempo de reflexão que está por detrás do ato criativo e da conceção arquitetónica de ARX-Portugal. Mostra-se a metodologia de pensamento e processo de trabalho e não apenas o resultado final. E, no seu caso, esta entrega total ao trabalho obsessivo de modelos espaciais é o ADN do próprio atelier.
A actual crise da construção e da arquitetura em Portugal, e a recente aposta na internacionalização, com o atelier a ter representação em Moçambique, faz-nos questionar as novas estratégias e deixa-nos a curiosidade sobre o que irá preencher as caixas ainda vazias que se empilham na entrada da exposição, os baús do tesouro deste “arquivo in progress”.