A Aura Portuguesa

Enquanto caminhávamos na penumbra da adega, ”A” não conteve a sua surpresa “mas, é verdade que temos arquitectura de nível mundial??“. O meu espanto foi directamente proporcional ao dele “É evidente que sim, somos um povo como outros. Tanto quanto sei, não nascemos com nenhuma deficiência genética…“.

Sempre tive inveja de italianos, holandeses ou brasileiros, porque têm bienais internacionais de arquitectura. Por outras palavras, porque têm essa espécie de festivais de arquitectura, que, em casos como a de Veneza, tomam conta da cidade e nos motivam imenso. E quando digo “nos“, penso não estar enganado se incluir também aqueles que não são arquitectos. Quando as visito, gosto de encontrar gente vinda de todo o mundo, amigos de outros países, arquitectos cuja carreira sigo à distância, numa cidade que emana arquitectura. Depois de certas bienais parece que a nossa visão do mundo sofre um impulso e ganhamos novas referências.

A partir deste mês vamos passar a ter uma Trienal de Arquitectura em Portugal, que abre no dia 31, em Lisboa. Quando percorrer exposições, debates e espectáculos, terá passado um ano de trabalho intenso do qual nasceu, do nada, um festival de arquitectura com dois meses de programação intensa.

Ao olhar para trás e para as peripécias da organização, vejo um reflexo contraditório do nosso país. Com o que tem de pior e de melhor. Como seria de prever, assisti à inseparável dupla pessimismo/mediocridade devidamente alicerçadas num irrecuperável complexo de inferioridade. É  isso que faz com que, sempre que alguém tenta abrir novos horizontes, logo  surgem os situacionistas que os querem fechar rapidamente. Como se tratasse de uma perniciosa ameaça às “coisas“ instaladas que há que liquidar a todo o custo.

Por outro lado, reconheci felizmente a habitual curiosidade e abertura que caracteriza os portugueses, que gerou uma espécie de Trienalomania que reuniu empresas, alguns ministérios, diversas instituições e todos aqueles que trabalham directamente no projecto.

Feito o balanço, percebe-se que arquitectura é uma espécie de case study que pode ser um estímulo para outras áreas da sociedade. Embora Portugal enfrente dificuldades a diversos níveis, e a arquitectura normalmente seja também reflexo do estado de desenvolvimento do meio social, neste caso isso não impede que haja qualidade. A verdade é que os arquitectos portugueses trabalham hoje num contexto bastante diferente do passado, um meio muito mais aberto, que lhes permite relacionarem-se, em tempo instantâneo, com a melhor produção a nível mundial. Isso acontece pela primeira vez na história e os resultados são quase “fora de escala“ para um país tão pequeno e periférico. Vive-se num estágio avançado em que as nacionalidades estão muito mais esbatidas, pela supressão das fronteiras na Europa, pelos concursos internacionais, pelo Erasmos, pela internet, pela grande mobilidade dos jovens profissionais europeus, etc. E, na arquitectura, isso teve um claro impacto positivo.

Neste contexto, Portugal afirmou-se como uma espécie de “região demarcada“ da arquitectura. Visto de fora, embora essa percepção não seja tão clara como muitos julgarão, a arquitectura portuguesa possui uma “aura“ positiva. E isto é relevante pois contraria a lógica pessimista que atravessa a nossa sociedade, como se fosse uma doença endémica sem cura.

Já houve quem me perguntasse como pode a arquitectura portuguesa ser tão boa, se aquilo que está à vista é em geral tão mau. Provavelmente, porque o “meio“ estimula a mediocridade, os esquemas, a preguiça, o imediatismo, a superficialidade. Tal lógica, operando num contexto em que a legislação permite a curiosos desenhar arquitectura, prepara o terreno fértil para a mediocridade instalada. Pior, mais do que instalada, assimilada como normal. Infelizmente, com consequências negativas de carácter colectivo. Construir um discurso medíocre e superficial é mais rápido, barato e facilmente apreensível pelo receptor. Há portanto que actuar ao nível do receptor, mostrando-lhe que há outras realidades possíveis.

Um dia, um amigo meu brasileiro, dono de um dos mais bem feitos portais de arquitectura do mundo, disse-me: para mim, há dois países que estão no topo a nível mundial  no campo da arquitectura, Espanha e Portugal. Entre esses, talvez Portugal esteja acima.

Em Portugal, país onde a auto-estima parece ser sinónimo de auto-flagelação, é um privilégio exercer uma profissão que nos permite encarar de cabeça erguida os nossos pares além-fronteiras. A arquitectura portuguesa não procura ser, a arquitectura portuguesa é. Mas pode e deve ser muito mais. Sobretudo, não se pode acomodar, porque a cultura avança e rapidamente voltamos à “cauda“ da Europa. Basta aprender com países como a Irlanda e a Eslovénia, que não eram propriamente paradigmas no campo da arquitectura e que vão surpreender na Trienal de Lisboa. Como já o fizeram no campo da economia e da educação.

Ao escrever este texto, escuto o álbum “Espaço“, encomendando pela Trienal a Mário Laginha, e que tive o privilégio de ouvir pela 1ª vez em sessão privada com o próprio músico.  É a prova de que há outras áreas em que os portugueses estão no topo a nível mundial. É uma obra perfeita, com Mário Laginha, Alexandre Frazão e Bernardo Moreira ao seu mais alto nível.

(*) Por José Mateus para a revista “ACTUAL“ do Jornal “EXPRESSO” de 26/05/2007