O Abraço Cubista

Num país de arquitectos brilhantes, como Vilanova Artigas, Oscar Niemeyer, Lúcio Costa ou Paulo Mendes da Rocha (o mais recente prémio Pritzker), Álvaro Siza  vê erguer-se uma das suas obras máximas: a sede da Fundação Iberê Camargo. Foi o ponto de partida para falarmos com este grande embaixador da cultura portuguesa, que, com um grande sentido de humor por vezes irónico, lança um olhar profundo sobre a sua obra e as várias faces do ser arquitecto. Confirma-se como um extraordinário observador: de lugares, de pessoas, de circunstâncias, da história, que nos ajuda a entender o que está por trás dos seus projectos. Em entrevista à revista El Croquis nº 95 de 1999, Siza disse que “é necessário compreender, para alcançar a liberdade criativa“. Nesta conversa de duas horas no seu atelier, revela-nos como foi possível tal expressão de liberdade, sublimar-se em Porto Alegre. Frente a “um rio vastíssimo que parece um mar“, este edifício desenha um abraço cubista que prende, sobretudo, o nosso assombro.

 

Quando  chegou ao local pela primeira vez, com o programa na mente, houve uma primeira reacção?

Quando lá fui já tinha um projecto feito para um concurso. Convidaram-me por escrito e mandaram-me o programa, fotografias, um vídeo e levantamentos topográficos. A partir daí iniciei o projecto que foi imediatamente aprovado em grande parte pelo interesse da viúva do pintor Iberê Camargo. Penso que também por influência do engenheiro Canal, que agora reside na obra. É uma pessoa extraordinária de dedicação e entusiasmo. Há também os mecenas e uma comissão, composta por gente que conheceu o Iberê Camargo, com grande solidez a vários níveis incluindo o financeiro. Fui lá apenas depois de ter sido escolhido porque já me custa deslocar-me e era uma viagem de dezoito horas. E até para contrariar esta coisa que se cita sempre a meu respeito de “ir primeiro ao lugar“

Ter algo já pensado pode ser uma forma mais consciente de ir ao sítio.

Faço-o às vezes porque gosto de ter a ‘ponta da meada’ de uma ideia, eventualmente nebulosa, quando visito o local. Mas é fundamental visitar o local antes de desenhar sobretudo tratando-se de centros históricos onde é insubstituível um contacto directo com a atmosfera, o aspecto humano ou os cheiros. Eu havia começado com coisas mirabolantes: a primeira ideia previa uma entrada por cima, onde propunha um parque de estacionamento e descia-se através de um elevador – eu lembrava-me do elevador da Baía – mas não era possível intervir ali pois é uma zona residencial caríssima. A visita ao local reforçou o interesse que já tinha pelo trabalho, muito por ser um local estranho e dificílimo, e o projecto evoluiu. Era uma pedreira abandonada onde havia um buraco circular numa encosta, em frente de um rio vastíssimo. A vegetação, como sempre acontece no Brasil, tomou conta daquilo com uma pujança tremenda. Tinha que implantar ali o edifício, mas, dada a grande beleza da vegetação, impus  a mim próprio não lhe tocar. A forma do edifício é muito derivada daquela curva irregular do terreno. Depois houve partes do programa, os ateliers, cafetarias, etc. que coloquei em corpos semi-destacados ligados na cave. São fragmentos que aproveitam aquela espécie de língua mais apertada do terreno. O parque de estacionamento na cave também era um grande problema e foi negociando com as autoridades de Porto Alegre que conseguimos algo que parecia não ser possível: fazê-lo debaixo da estrada. Isso demonstra a influência e prestígio dos promotores deste projecto, que actuaram sempre com um empenho e entusiasmo enormes, algo que muitas vezes nos falta. É muito diferente trabalhar assim, ou, como acontece muito, numa luta permanente pelo dinheiro, pelos gostos, pela polémica, etc. Encontrei ali um ambiente de trabalho incrível e dificilmente me lembro de uma experiência tão gratificante.

O edifício tem um ponto estável que é o canto do grande vazado interior em “L“. Daí para fora tudo parece instável, irregular e quase nada cartesiano.

Aquelas formas reflectem influências do Brasil mas resultam também de condicionamentos apertadíssimos. O que fica frente à encosta demarca-se dela muito claramente, é arquitectura, algo feito pelo Homem, geométrico, estável e contraposto a curta distância com um mundo orgânico de topografia e vegetação. Do outro lado há a força da curva e todas as sugestões que vêm do meu contacto com a arquitectura brasileira e com a vida no Brasil. Aquela pujança ou alegria que existe, por vezes, no meio de uma grande miséria. É a vitalidade extraordinária de um país jovem e com muitas origens humanas. Quando tirava o curso,  uma coisa que marcou a minha geração, foi o aparecimento em força na Europa, nos anos 50, da divulgação da arquitectura brasileira do Oscar Niemeyer, Affonso Reidy, etc., com toda aquela liberdade. Mas a forma do terreno também obrigou a certas inflexões e foi necessário torcer paredes porque não havia espaço para desenhar espaços ortogonais. Outro aspecto interessante naquele sítio é a sensação de se estar perante um mundo em movimento porque é uma avenida onde passam carros muito depressa. O edifício tem também a ver com esse movimento.

Foi um dado consciente?

Não mas às vezes surgem coisas de muitos lados que não são um desígnio e que tentamos compreender e racionalizar. Não pensei isso mas agora estou seguro que me impressionou e também entrou no processo.

Parece haver um tema central neste projecto: a condução do visitante através de uma experiência sensorial da arquitectura. Foi isso que tentou fazer, por exemplo, com as rampas que se projectam para o exterior? O visitante está dentro e fora do edifício ao mesmo tempo.

Apesar de ter aquela fragmentação, como uma espécie de cauda de um cometa, o museu é um bloco muito compacto. Senti a necessidade de que a forma respirasse e a solução seria projectar as rampas para fora. Conjugadas com a curva que marca muito a entrada, desenham um espaço ainda exterior muito legível. Nós próprios temos um corpo compacto mas depois temos coisas que saem fora: os cabelos ou os dedos. Queria também fazer um percurso de rampas, onde está a memória do impressionante e genial Guggenheim. Embora haja uma diferença fundamental porque naquele caso as salas de exposição estão na rampa e aqui a rampa é exterior. De certa maneira é o oposto mas é evidente que aquela ideia de percurso deixa uma impressão muito forte em quem o visita. Não pensei em fazer algo “à Guggenheim“ mas terá certamente a sua influência. Também muita gente me fala no SESC-Pompéia da Lina bo Bardi. Nunca pensei nela mas admito que possa haver influência porque visitei as suas obras.

Um dia disse: “ No que se refere a distorções, podem converter-se num vício se não têm uma boa razão de ser… existe o perigo dessa espécie de geometria arbitrária que interfere com o uso e determina em excesso o edifício“. É comum referir-se isso acerca da arquitectura dos museus. Existe esse risco neste edifício?

Acho que não. Quando dava aulas na FAUP, a dada altura todos os projectos dos estudantes eram bastante irregulares e eu perguntava-lhes directamente: porquê? Ou há uma razão ou roça o superficial, não é sólido. No contexto do museu houve muitas razões para chegar àquele resultado. As rampas, por exemplo, tinha que estendê-las para terem uma inclinação aceitável e por isso projectam-se metade fora. Tinha também que criar ângulos que possibilitassem ao engenheiro agarrar aquelas consolas tremendas de modo a que não vibrassem. Trabalhei também num risco grande em relação à luz. Naquele grande espaço vazado interior, a luz vem quase só de uma fenda na cobertura e só perdi as dúvidas quando se desmontaram as cofragens e a luz entrou no espaço.

E  nas rampas há umas janelas, dir-se-ia, demasiado pequenas.

Diziam-me isso no Brasil, tinham dúvidas. Mas elas tinham que ser pequenas por razões estruturais pois esses volumes são umas enormes consolas. Mas quando entraram lá dentro e as viram ficaram espantados com a dimensão que ganhavam.

É conhecido o seu interesse pelo modelo de museu do séc. XIX. Por exemplo, no seu projecto de extensão do Museu Stedelijk, em Amsterdão, há nas salas novas uma grande analogia com a estrutura espacial do edifício antigo.

É verdade, isso tem a ver comigo mas era um aspecto imprescindível para Rudi Fuchs, que deu indicações muito precisas sobre o que pretendia. Trabalhar com ele foi uma experiência fantástica e foi a primeira vez que o fiz desde o início com o director de um museu. Acho que esses museus são bem mais flexíveis do que um museu de plano aberto porque no fundo adaptam-se a diferentes dimensões de exposições e proporcionam uma envolvente que é uma possibilidade de diálogo com o que lá se expõe.

São sequências de espaços ligados directamente em cadeia.

É isso, e estranho que agrade a poucos. Nos museus de arte contemporânea nunca se sabe bem o que vai ser lá exposto e portanto a ideia mais divulgada, é a de que devem ser um espaço aberto onde se faz tudo. Uma das actividades que mais se verificam na arte contemporânea é as instalações que significam muitas vezes a criação de algo em diálogo com o espaço pré-existente. Por isso não entendo esse apelo. Lembro-me de depoimentos de pessoas que trabalharam em museus assim, como por exemplo do Gregotti, me dizer que era quase impossível montar uma exposição porque era tão flexível que era preciso construir um interior, com o que isso também significa em termos de custos.

Um museu mais compartimentado não é impositivo?

Não, é material de trabalho à disposição. Estou muito chegado a esse conceito de salas várias, evidentemente com fluidez e com um relacionamento entre elas, e conto com a flexibilidade que resulta dos materiais que podemos escolher hoje para construir. Verifico, por exemplo, que nos museus de Serralves e de Santiago de Compostela, tão criticados desse ponto de vista, têm-se feito as mais diferentes exposições. O museu Iberê Camargo é assim. Tenho nos meus olhos alguns museus antigos e experiências como a mais bela exposição de arte contemporânea que me lembro de ter visto. Foi montada pelo Rudi Fuchs numa casa barroca em Haia. Era uma extraordinária exposição de escultura dentro de salas onde até havia fogões de sala barrocos e tudo se relacionava na perfeição. O espaço, longe de ser impositivo, era mais um estímulo para a exposição.

Voltando ao tema da luz, no “ Elogio da Sombra“ (1933), Junichiro Tanizaki defende a ideia de que os ocidentais não valorizam a penumbra, associada no Japão ao conforto espiritual. Será isso verdade na nossa arquitectura tão marcada pela herança islâmica?

Ainda bem que fala nisso porque há duas coisas que me marcaram muito. Uma foi uma visita que fiz, por volta dos 14 anos, a Alhambra, em Espanha, que tem uma característica magistral: a graduação. É algo comum à arquitectura islâmica em geral: um pátio com sol forte, depois um pórtico que protege um pouco, depois uma segunda fila de espaços interiores com uma luz suave e finalmente passar à penumbra. Eles têm sistematicamente essa ideia da profundidade e de graduação da luz, características que a arquitectura moderna perdeu bastante com o uso do vidro e com a construção de espaços menos profundos. Outra coisa que me marcou foi ter estado doente com uma primoinfecção, antes de existirem os antibióticos. Os meus pais levaram-me para uma casa perto de Famalicão que tinha uma varanda fantástica debruçada sobre o vale, para onde ia todos os dias e não podia sair. O tratamento era de uma dureza incrível e a certa altura não podia ler nem ouvir rádio. Mas tinha aquela vista fantástica que, ao fim de quinze dias, eu já não podia ver. Odiava-a. Talvez por isso, muitas vezes tendo a dominar reacções quando me sugerem envidraçados. Costumo dizer que é para não me chatear. E realmente esta vista sobre o rio, através das janelas aparentemente pequenas do museu, potencia de uma maneira incrível a luz e a comunicação interior-exterior. São coisas em que a arquitectura islâmica é magistral.

Interessa-lhe o espanto que possa suscitar um edifício estranho? Eu acho que a sua arquitectura tem isso.

O problema é que eu não a acho estranha. Nunca procuro fazer uma coisa estranha nem gosto disso. Mas realmente a reacção das pessoas por vezes é essa. Lembro-me de que as primeiras casas que eu fiz em Matosinhos, já deram direito a crítica no jornal onde se considerava que eram uma coisa terrível, estranhíssima, bárbara. Isso foi acontecendo pela vida fora, até hoje. Por exemplo agora, eu e o Eduardo (Souto Moura) estamos a fazer o projecto para a Avenida dos Aliados e também há muita polémica. A mim não provoca estranheza porque segui um processo que levou àquelas formas ou àquela atmosfera. Não houve uma procura da diferença.

Essa recusa da procura da diferença, faz lembrar palavras suas de há vinte anos: “Sou conservador e não tenho vocação de marginal. Não gosto de inventar rupturas, nem de ignorá-las.“ Ainda é assim?

Penso assim e por isso é que estranho as estranhezas. Porque realmente sou conservador, no sentido de que nunca andei pelas vias da ruptura. As circunstâncias da minha vida profissional não conduziram a isso. Sou posterior ao tempo das vanguardas, do Homem novo, numa arquitectura nova, num mundo totalmente novo. Sempre trabalhei no sentido da continuidade o que não quer dizer imobilismo. Mesmo no museu Iberê Camargo e basta lembrar que vêm à mente dos críticos afinidades com várias arquitecturas anteriores.

O arquitecto brasileiro Vilanova Artigas, disse uma vez:  Procuro o valor da gravidade, não pelo processo de fazer coisas fininhas…o que me encanta é usar coisas pesadas e chegar perto da terra e, dialecticamente negá-las“. Este edifício tem uma aparência pesada e agarrada ao solo. Interessa-lhe o tema da gravidade?

Uma das razões que que me ocorrem quando digo que sou conservador é que nunca passei pelo período de fazer, ou raramente tenho desejo disso, um edifício apoiado em pilares, à semelhança do que fazia por exemplo Le Corbusier. Normalmente os meus edifícios pousam no chão com embasamento, o que, à luz dos códigos do movimento moderno, é antigo e reaccionário. Quando comecei a interessar-me por arquitectura, estava-se no tempo do CIAM em que, aquilo que era quase o único caminho possível – o movimento moderno e as suas ideias – estava em revisão. Havia a crítica pelo seu desinteresse pela história, essa inversão de negar a gravidade, etc. Fernando Távora participava nesse debate e trazia-me os seus relatos. Depois vivi também a influência do Inquérito à Arquitectura Popular Portuguesa. Talvez por isso, para mim, a expressão da gravidade é mais um propósito ao projectar do que algo a negar. Neste edifício, o que de certa maneira dá uma certa leitura contra a tirania da gravidade, são as consolas das rampas. Mas não é a maneira como pousa o edifício, que, sem dúvida, é uma das preocupações onde concentro muito trabalho. Sou também conservador no cuidado desse pousar em relação à manutenção porque uso quase sempre embasamento num material de fácil manutenção.

É então um conservador.

É como a amigável discussão que eu e o Eduardo mantemos há anos sobre os rodapés. Ao contrário dele, eu nas minhas obras ponho sempre rodapés, como esse aqui do gabinete. Repito-me muito. Inventar é muito difícil.

A propósito disso, fala muito em viagem-observação-memória-transformação para explicar a invenção em arquitectura.

Aquilo que se chama invenção nasce da informação e por isso, da aprendizagem. Para mim a viagem ou a visita de obra são os grandes momentos de aprendizagem. Já no renascimento houve as viagens a Roma e nos séc. XVIII e XIX as viagens a Itália. Foi sempre uma necessidade na aprendizagem esse contacto directo, essa continuidade. O que está na base da invenção é em grande medida o que está para trás e depois, as circunstâncias do novo contexto histórico.

Isso explica a influência da arquitectura de Palladio que transparece nos seus projectos?

Admito que isso transpareça porque realmente tenho. E até estou a fazer a recuperação em Vicenza de uma Villa Palladiana, a Villa Colonnese – que não foi desenhada por Palladio. Nas muitas visitas que fiz a Vicenza visitei já a maioria das Villas de Palladio e acho que é realmente o máximo.

Porquê?

Porque é de uma simplicidade desconcertante e de um apuro inexcedível. Quando visitamos uma Villa de Palladio, encontramos paredes de reboco, algumas pedras, janelas, coisas aparentemente muito simples. Mas há naquelas casas uma enorme sabedoria e uma atmosfera sublime.

É uma arquitectura territorial.

Palladio construía muito para agricultores em propriedades com o território muito bem organizado. Há uma continuidade entre edifício e paisagem que não é de transparências com vidros. São até edifícios bastante maciços mas numa relação ‘outra’, que não a de visibilidade imediata. Há sempre uma relação fantástica com o território, em acordo com, em ‘diapasão’. Não é original dizê-lo mas para mim é um dos grandes arquitectos da história universal, e, talvez aquele que exerceu maior influência. Palladio deu à arquitectura inglesa do séc. XVIII, à arquitectura do norte da Europa e até à arquitectura moderna, por exemplo de Adolf Loos.

Essas referências estão no embrião de ‘momentos’ de invenção, sobretudo se o novo contexto for favorável.

É um impulso grande. Se quisermos esquematizar, porque eu não gosto muito da palavra, o projecto no Brasil é mais inventivo do que a maioria do que eu faço. Porque havia esse ambiente, que se sente no ar, e ao qual não podemos estar alheios, próprio de um país novo como é o Brasil.

Isso leva a que a sua carreira seja marcado por pontos súbitos de viragem e surpresa como Compostela, Canavezes e Porto Alegre?

Sim, porque trabalho muito a partir dos estímulos e a partir do entusiasmo exterior. O ambiente que me rodeou no Brasil não era a vil tristeza que envolve a maior parte do nosso trabalho. Nós somos afectados por isso. O lado afectivo é muito forte e invade os outros complementos, a razão, a intuição, etc. Mas há circunstâncias em que é tão penoso trabalhar que é quase impossível fazer obra de mérito. O dinheiro é uma razão mas há também o desinteresse, muitas vezes pela qualidade em todos os sentidos. O que interessa é acabar na data porque é conveniente e se não houver tempo para o fazer bem, faz-se mal. Há este aspecto dos mandatos curtos – felizmente – mas que têm outra face que é a ânsia de acabar uma obra para dar provas de eficácia. Isso afecta a qualidade do trabalho da arquitectura. Quando trabalhei para a Holanda, verifiquei que havia eleições, mudava o partido e a obra não parava nem entrava em crise por isso. Continuava-se porque obra pública é  obra de interesse público.

Vê algumas semelhanças entre o processo compositivo da arquitectura e por exemplo da literatura ou da música?

Há muitos anos li um artigo muito interessante numa revista argentina, a Nueva Visión. Havia um texto que nunca mais me esqueci, de um músico a descrever como compunha. Encontrei ali tantas afinidades com a arquitectura que para mim, na altura, foi uma revelação. Eu li aquilo e comecei a ver-me a trabalhar em arquitectura, seguindo a lógica da hipótese-comprovação-crítica-reformulação. Essa espécie de ziguezague que nós usamos, encontrei-a na discrição de um músico. Uma das coisas difíceis de aceitar é a criação de fronteiras entre actividades que são afins, promovendo, no fundo, a incomunicabilidade. Também encontro constantemente afinidades enormes entre a arquitectura, no seu processamento, e o cinema, os percursos desenhados com a câmara, a luz…

Diz-se que Coppola, na rodagem de Apocalypse Now, construiu a narrativa penosamente ao longo das filmagens. Andou perdido, com os actores numa grande tensão, e só em fase adiantada percebeu o que queria fazer.

Não é por acaso que muitos cineastas famosos estudaram arquitectura como por exemplo o  Michelangelo Antonioni ou Cotinelli Telmo. Há relações também com a literatura. Há um texto de um autor cujo nome agora não recordo que referia como em determinada altura os personagens de um romance ganham autonomia e tomam conta da evolução da obra. Na arquitectura também há um determinado momento em que um sopro percorre o edifício que se está a projectar e as coisas ‘caem’ como fruta madura. A certa altura um arquitecto até pode perder-se porque vai naquela onda de impulso mas tem que lutar, criticar, etc.

Acha que a arquitectura portuguesa vive um bom momento?

Vive um bom momento porque há mais oportunidades e mais exigência do ponto de vista das infra-estruturas necessárias. Há um alargamento da consciência da necessidade dos arquitectos e isso tem que dar resultados. No imediato, esta explosão  de exigência e de possibilidades não tem trazido resultados visíveis bons. Outro problema é a má organização do território e a arquitectura é arrastada por isso.  Tem raízes dificílimas de atacar entre as quais está a decadência da agricultura e o abandono das terras. E há uma coisa que está muito na ordem do dia e os jornais estão cheios disso que é o mau uso do dinheiro. Assiste-se a cidades onde se gasta imenso dinheiro a construir rotundas com estátuas ou fontes no meio, parques infantis onde as crianças não gostam de estar. Há uma grande poluição visual devido ao excesso de objectos, moopies, bandeiras, etc., que parece uma espécie de doença infantil que cobre as cidades. Vivemos uma fase em que não se chegou a um equilíbrio entre o aumento das possibilidades e um aumento da exigência.

Acontece por questões políticas e culturais ou também porque não há bons arquitectos?

Há bons arquitectos, aliás há muitos conhecidos e até internacionalmente. Há qualidade mas não é geral. A qualidade da arquitectura também está dependente do contexto onde é possível fazê-la. Não é só questão de ser ou não ser artista, é necessário as circunstâncias também permitirem o aparecer da ordem e da qualidade.

O que tem de mais extraordinário a arquitectura?

Para mim é o prazer. É uma actividade que dá prazer embora por vezes seja pontual e quase que se pode dizer que por vezes conquistado penosamente. Se não existisse prazer na arquitectura era a actividade mais aborrecida e dolorosa que se possa imaginar. Os momentos de prazer que dá são tão fortes que não se desiste, não se muda de profissão.

Arquitecto é-se.

É-se e faz-se também.

Estamos ‘de partida’ e por isso sugiro que falemos de viagens que o marcaram.

O problema é a quantidade, que é uma coisa incrível. Vêm-me sempre à mente as viagens longas para países muito diferentes do nosso, embora com os tais pontos de contacto, que fiz por razões várias e quando a força física me permitia – quase sempre com um grupo de pessoas amigas. Recordo um mês na Grécia, vinte dias no Egipto, ou uma viagem inesquecível a Marrocos, antes da chegada do turismo de massas. Ainda tenho uma impressão mais antiga, era eu praticamente menino, que eram as viagens a Espanha numa altura que ia sempre lá com os meus pais e irmãos passar férias. Estava-se nos fins dos anos 40, era tudo mais barato que Portugal e aí nem turismo havia. Era uma Espanha pobre mas maravilhosa.

O mundo alargava-se imenso.

Sim, e a realidade é que eu comecei a viajar muito tarde. Tive essas viagens muito pequeno e protegido mas depois não viajei durante muito tempo. Lembro-me até de dizer que não era preciso para nada. Depois recomecei com uma bolsa para estudantes e assistentes da Faculdade de Arquitectura. Eu era assistente, tinha acabado de entrar e lembro-me de uma viagem deslumbrante a Veneza e outra a Paris onde vi uma exposição de Picasso. Depois, por razões profissionais e de convites fartei-me de viajar: fui ao Peru e visitei o Machu Pichu que é uma coisa deslumbrante, fiz viagens à Colômbia ou à Finlândia. Mas sempre, o mais profundo, está nessas viagens à América do Sul, à Ásia, ao Japão, ou nas estadias várias em Macau. São sítios de cultura muito diferente da nossa mas que evocam profundas ligações históricas. É como encontrar uma parte das nossas raízes num mundo muito diferente.

E tão distante…

…e tão distante.

(*) Escrito por José Mateus para a revista Linha 6