Ser Arquitecto

Nuno Mateus, Lisboa 11 de Junho de 2003
In Boletim da C.M. Grândola – Jul / 2003

Neste país sem grande tradição de cultura de exigência começa a despertar uma preocupação colectiva sobre o desordenamento caótico com que placidamente estamos a marcar o território e sobre a falta de qualidade daquilo que se constrói.

Também muito difundida é uma certa ideia de património, sempre feito no passado, que aparentemente nos compete preservar indiscriminadamente sem análise séria da sua (eventual) qualidade. Acredita-se que por si só, o que é antigo é bom. Este conceito assume-se na maior parte das vezes como uma ideia superficial -preservar a fachada- tão próprio de uma cultura da imagem em que vivemos, ignorantemente desinteressada de um conceito mais trabalhoso de conteúdo.

Efectivamente está enraizada uma ideia de que nós hoje não construímos património (de amanhã) mas sim de que este já está todo construído, numa espécie de demissão colectiva ideal.De facto a nossa cultura de fraco sentido cívico aborda a construção como um meio para atingir um fim (pessoal) e não como um fim em si (colectivo). Interessa agora mais fazer rápido e o mais barato possível. Para vender. Muita gente endivida-se tragicamente a 30 e mais anos, por casas que não durarão tanto.Tenho aprendido muito nas obras com os velhos artesãos que restam da antiga construção com ética e saber. Tinha-se orgulho em fazer bem.Hoje a construção deixou de ser um trabalho especializado para receber todo o tipo de mão de obra. É sabido que quem não sabe fazer mais nada, vai para as obras. E este facto foi já assimilado e tornou-se uma cultura.É esta a cultura do nosso tempo e que vamos a deixar como pesado legado aos nossos filhos e gerações vindouras, que terão certamente uma concepção distinta da actual do que é património, obrigados que serão a investimentos avultados em extensas demolições.

Nos finais dos anos 80 convenceu-se a nossa sociedade actuante de que já podiamos estar descansados na medida em que a grande maioria dos concelhos tinha os seus Planos Directores Municipais finalmente elaborados. Acreditou-se que este passo bastava para a construção mais harmoniosa de um futuro.

Ao abrigo destes Planos, que por si só não encerram ideias de cidade nem de cidadania, já que são apenas manchas sobre cartografia com quantidades, percentagens e usos, construímos o país de Norte a Sul em loteamentos pontuais que se traduzem em maximizar a construção em terrenos de matriz rural. Interessa aos promotores e proprietários e perniciosamente interessa aos municípios que recebem directamente compensações financeiras em cedências, taxas de licenças e impostos autárquicos para o seu financiamento.Desta forma as Câmaras Municipais tornaram-se parceiros interessados na promoção imobiliária que assola o país.

A execução de Planos de Pormenor seria o passo civilizado lógico e obrigatório a seguir aos Planos Directores, traduzindo quantidades em qualidades, estatísticas em Ideia de Cidade com escala, ambientes, ruas e praças, ou seja num registo patrimonial contemporâneo de vivência e bem estar colectivo.Este passo, de investimento social, supõe outra lógica, supra individual, muito melindrante para a nossa democracia demitida de autoridade e responsabilidade. Trata-se de contruír uma real matriz urbana independentemente da propriedade, sobre a qual desenhar os projectos dos vários edifícios com a garantia e que o resultado final seja de qualidade urbana. E para que isso se atinja o Plano de Pormenor não basta: há que escolher depois os intérpretes (arquitectos) realmente qualificados para os objectivos a atingir.Estes passos foram, com raras excepções, evitados, tendo sido entregue directamente aos donos dos terrenos e promotores imobiliários, e a Ideia de Cidade (civitas) transformou-se em Operação de Loteamento.O nome parece dizer tudo, e diz. Aceleram-se as contrapartidas e dispensam-se os investimentos nos estudos e, claro está, dispensa-se também a qualidade final.Tudo em nome do presente.Estas operações pulsam freneticamente ao ritmo das eleições, sejam elas de que espécie forem. Sabemos que se ganham no saldo entre “promessas” e “obra feita”. Contudo a Ideia de Cidade e por extensão de Campo constrói-se com outro tempo e sobretudo tem outros objectivos. A consciência que agora se desperta é de que lhe falta qualidade, para não dizer que dificilmente poderia ser pior.

Temos assistido nas últimas décadas ao crescimento acelerado dos níveis de exigência dos portugueses relativamente às mais diversas coisas: Alimentação, roupas, automóveis, telemóveis, etc. Apesar disso essa exigência ainda não chegou ao património construído. É comum vermos modelos de automóveis parados em frente a casas que custam o mesmo preço. A exigência existe e sabe-se o que fazer para satisfazê-la. Mas fica à porta.Na construção, de qualquer dimensão e proveniência, o projecto ainda é considerado o lugar mais adequado para começar a economizar ou idealmente é dispensável.Sempre e só quando não se pode passar sem eles, procuram-se técnicos (arquitectos e engenheiros) que fazem projectos mais baratos, acreditando ingenuamente que se recebe o mesmo, desvalorizando desde logo o meio que decide a qualidade do enorme (esse sim) investimento global da obra, desvalorizando irremediavelmente o resultado final.

Custa ainda a entender não apenas a particulares como até ao Estado nas suas mais diversas formas (Câmaras, Institutos, Ministérios) que um bom projecto é o único investimento realmente seguro e assiste-se generalizadamente no país a obras de dezenas e centenas de milhar ou até de milhões de euros realizarem-se no maior dos improvisos e incompetências, como se o dinheiro não custasse a ganhar.Previligia-se o imediato, negligencia-se o que fica.

Num estudo realizado recentemente concluiu-se que a classe profissional que mais projectos licencia no somatório das autarquias do país é, pasme-se, Engenheiros de Minas. Segundo a minha (como constatei) ultrapassada concepção, o trabalho deste grupo de profissionais incidia no subsolo. Uma revelação talvez não demasiadamente surpreendente se olharmos a cidade e a paisagem do nosso país. Bateram-se incansavelmente os Arquitectos, enquanto Ordem, pela recente revogação do Decreto 73/73 e o direito exclusivo à assinatura de projectos de licenciamento (de arquitectura) que certamente virá alterar parte deste estado de coisas.

Portugal vive agora um momento um tanto disléxico relativamente à arquitectura.A muito recente moda da multiplicação de escolas de Arquitectura pelo país, que rondará nesta altura as 30, vai produzir a muito curto prazo milhares de profissionais que inundarão o território, de forma tão instantânea como preocupante, pela nem sempre adequada preparação.

Como em muitas outras profissões, a minha (arquitectura) tem todo o tipo de profissionais. Enquanto alguns enriquecem em mesas de café em frente a Câmaras Municipais, onde assinam projectos das mais incompetentes e baratas proveniências, outros há que são os valores seguros, aqueles em que o trabalho e o homem se confundem e que em cada trabalho seu o país ganha uma jóia do seu paupérrimo património contemporâneo.

Começa já um grande grupo de profissionais, pela obra construída, a afirmar-se não apenas nos atentos meios académico nacionais, como também internacionalmente, em publicações especializadas, conferências, exposições, integrando a rede do “star-system” internacional. A excepção (cerca de meia dúzia) começa a vencer concursos internacionais e a ter encomendas de de projectos de vulto fora do país.Nesta minha área profissional, que no fundo é a de vida de todos nós, pelos fracos critérios de exigência do país e desconhecimento generalizado dos políticos, promotores imobiliários e particulares, grande parte dos arquitectos a que me refiro debate-se paradoxalmente com uma injusta escassez de trabalho.

É um país com grandes tradições no desperdício dos seus melhores recursos.

Esta situação vai alterar-se quando outras exigências despertarem e se tornarem cultura colectiva.