SPREEBOGEN 33-91-07

“…estes [ vazios] abrem uma multiplicidade de possibilidades, de modo que a combinação dos esquemas textuais se torna uma decisão selectiva do leitor…”

Wolfgang Iser [1]

  1. VAZIOS URBANOS

Na cidade contemporânea, um dos maiores recursos para a sua reavaliação reside nos lugares degradados, “obsoletos”, ou marginais, que encontramos disseminados desde o tecido urbano consolidado às periferias. Formam uma verdadeira rede de hipóteses, que, quando avaliadas em conjunto, podem produzir um profundo impulso reformador da cidade. “Vazios Urbanos”, “Brownfields”, “Terrain Vague” ou “Espaços Banais”, são designações comuns para estes lugares que deveriam estar presentes de forma consciente e concertada, nos planos estratégicos das cidades.

O arquitecto espanhol Ignasi de Solà-Morales, definiu com clareza estes territórios : “uma área sem limites claros, sem uso actual, vaga, de difícil compreensão na percepção colectiva dos cidadãos, constituindo normalmente um rompimento no tecido urbano. Mas é também uma área disponível, cheia de expectativas, de forte memória urbana, com potencial original: o espaço do possível, do futuro” [2]

  1. TEXTO

Se entendermos a cidade como um texto, os vazios urbanos são vocábulos em falta, ou que, temporariamente parecem desajustados do texto global. Neste sentido, estes vazios não devem ser avaliados isoladamente, pois é com a sua clarificação que o texto global, a cidade, ganha consistência, uma nova dimensão.

Na cidade, cabe ao arquitecto a interpretação do potencial infinito desses vazios, e, com a sua capacidade transformadora, tem o poder “transcendente” de decidir o destino do texto global. Tal como Iser enuncia para o texto literário.

III. MEMÓRIAS

A memória desses locais, por vezes de grande importância no imaginário colectivo, leva-nos a encarar os vazios urbanos muito para além de uma visão meramente pragmática. O seu valor não decorre apenas da sua disponibilidade como território para transformação física ou infra-estrutural, ou da sua localização estratégica na cidade, mas, seguramente, dos sucessivos factos ali ocorridos. A memória destes lugares torna-os irrepetíveis. Daí o fascínio que exercem, e, por consequência, o seu poder.

  1. SPREEBOGEN

Foi esse fascínio que senti há dezasseis anos, quando no Verão de 91, visitei um dos contextos urbanos mais paradigmáticos: o Spreebogen, distrito urbano do Reichstag (parlamento alemão) em Berlim.

A história deste bairro cruzara-se tragicamente com a trajectória da história mundial. Com a chegada ao poder de Hitler; com o início da 2ª guerra mundial; com a morte de Hitler e o fim da guerra; com a construção do muro de Berlim; e, finalmente, com a sua queda.

O Spreebogen havia sido o centro do poder até ao misterioso incêndio do Reichstag em 27 de Fevereiro de 1933. Algumas evidências apontam para uma equipa organizada por Hitler, para incriminar Marinus van der Lubbe, um Jovem comunista holandês, a “necessária” evidência da conspiração comunista contra o Estado alemão. Assim se abriu o caminho para o julgamento em série de comunistas “suspeitos”, e para uma cadeia de decisões políticas e actos “defensivos” contra cidadãos e Estados comunistas. O incêndio que naquele edifício deflagrou, foi o detonador da Lei da Autoridade que conferiu a Hitler a legitimidade de ditador. Em sentido literal, foi o rastilho de uma vaga de destruição planetária.

O Spreebogen era também Alsenviertel, um bairro habitacional da alta burguesia onde se construíra a Ópera Kroll em 1851. Era uma área urbana de prestígio, abraçada pela curva do rio Spree (daí o nome do distrito, “bogen” significa curva ou arco), através do qual os barcos transportavam passageiros e mercadorias.

Com o desenvolvimento das infra-estruturas ferroviárias, os transportes no Spree entraram em declínio, e, o início da construção de um ambicioso plano de Hitler, precipitou o destino do bairro. Tratava-se do centro do império alemão, o Große Halle encomendado por Hitler a Albert Speer em 1937. O projecto baseava-se na introdução de um longo eixo monumental orientado no sentido norte-sul, pontuado por edifícios governamentais, que passava pelas Leipziger Platz e Potsdamer Platz, e terminava numa monumental praça quadrangular rematada pelo Große Halle. Era um edifício neoclássico com uma fachada de 300m de largura e uma cúpula de 98 m de altura, que, assinalava a grande distância o centro do império. Preparava-se o cenário para grandes cerimónias de culto do regime, numa praça dimensionada para uma parada militar de um milhão de indivíduos. Uma parte substancial da destruição do Spreebogen deveu-se às demolições do Alsenviertel decretadas por Hitler para materializar o projecto de Speer. A própria guerra e a construção do muro que passava também ali fizeram o resto (na realidade, dois muros paralelos configurando um canal sinuoso e armadilhado que dividiu violentamente Berlim).

O Spreebogen faz a transição entre o Tiergarten, o conhecido boulevard na zona ocidental e a zona antiga da cidade, no lado oriental, onde se localiza a Spreeinsel (embrião histórico da cidade) e as mais emblemáticas obras de Karl Friedrich Schinkel. Com a chegada do muro foram demolidas as pontes (Alsenviertelbrücke e kronprinzenbrücke) que irradiavam sobre o Spree em direcção à agora Berlim Oriental. O parlamento alemão foi transferido para Bona, e, durante 40 anos, o Spreebogen perdeu o seu significado. Tornou-se um território marginal, desprezado, em suspenso. Um Vazio Urbano.

Ao caminhar por ali, esse imaginário lancinante esteve sempre presente. Nas proximidades encontravam-se ainda soterrados os restos do bunker de Hitler. Edifícios semi-abandonados, fachadas entaipadas, restos de muro, pontes demolidas e ruas sem casas, indiciavam um imaginário violento que o vizinho Tiergarten, ou as extensas superfícies de relvado, não eram capazes de iludir.

Recordo a inquietante visita clandestina à estação de metro desactivada, que estava vazia e fechada há décadas. Após ter entrado através de uma grade que alguém arrombara, foi como se tivesse recuado subitamente aos anos 40. Nesta estação-fantasma suspensa no tempo, existiam ainda inscrições nazis e os comboios passavam “indiferentes”.

Ao abandonar aquele lugar alienado, estava longe de imaginar que, no ano seguinte, viria a entregar um projecto para o concurso internacional para a reformulação urbana do Spreebogen. Foi um dos projectos mais complexos e interessantes da minha carreira.

Quinze anos após ter sido seleccionada a proposta vencedora (Axel Schultes + Charlotte Frank), independentemente das considerações sobre o conceito levado à prática, o Spreebogen retomou o seu papel central e estruturante em Berlim. A par do Spreebogen, zonas como a Leipziger Platz, Potsdamer Platz, Spreeinsel e Alexander Platz, foram focos de uma intensa revolução urbana. Em apenas quinze anos, mudou radicalmente a face da área central de Berlim, numa demonstração expressiva do potencial encerrado por estes vazios urbanos.

[Wolfgang Iser, In O Acto da leitura: uma teoria do efeito estético – vol II, p. 128-129]

[Solà-Morales, I. Terrain Vague. In Anyplace, Cambridge: MIT/Any, p. 118-123]

(*) Escrito no âmbito do Comissariado Geral da trienal de Lisboa 2007