TSF 14 Mar 06
Tal como outras actividades pertencentes ao universo das artes, e falo por exemplo da música, da pintura, ou da escultura, a arquitectura ou um edifício, é uma composição. E claro, para haver composição é necessário existir um autor.
Compor, numa definição “de bolso“ para esta curta crónica, é inventar algo formado por diversos elementos, que possuem entre si uma estrutura, uma ordem e uma harmonia internas que, no caso da arquitectura, para além dos objectivos utilitários que deve cumprir, possui ainda um valor estético, e eventualmente, filosófico. São conhecidas as reflexões conjuntas entre arquitectos e filósofos como por exemplo Eisenman e Derrida.E isto remete-nos agora para a questão do autor por detrás da composição.Como não nascem génios todos os dias, os melhores arquitectos têm um denominador comum: para além da enorme paixão pela profissão, são trabalhadores incansáveis. Para se inventar uma obra de grande qualidade é necessário um trabalho duro e longo. Mesmo que se trate de um anónimo edifício de habitação, que é, por estranho que pareça, um dos projectos mais difíceis de reinventar. Um vulgar bloco de apartamentos leva-nos sempre a pensar naquilo que ele vale por si e no que pode acrescentar ao bairro, à comunidade e em última análise ao património da cidade. Quem me escuta neste momento vive num desses edifícios. E com o “viver“ vem, naturalmente, a transformação.
E é sobre o modo como essa transformação não deve acontecer que eu quero falar hoje:
Li recentemente num jornal, um artigo sobre um casal que decidiu mover uma acção em tribunal, contra vizinhos de prédio, por construírem marquises que alteram a fachada do nº 156 do Campo Grande, sem qualquer projecto nem licença camarária. Não sendo arquitectos, e isso é significativo, mostravam-se indignados com a subversão da arquitectura enquanto composição e com o desprezo pelo respectivo autor.
Compreendo do que falam:
Vivo num bairro dos anos 50, desenhado por um grande arquitecto – Alberto Pessoa – que desenhou por exemplo a sede da Fundação Calouste Gulbenkian.
Apesar de ser sobretudo habitado, presumivelmente, por pessoas de estatuto social e cultural elevados, este bairro está semi-destruído por marquises para todos os gostos. Digo presumivelmente porque apesar dos sinais exteriores de riqueza que possuem não resistiram a conquistar mais aquela assoalhadasita, onde normalmentem se guarda a tralha que se vê das ruas, sacrificando aquilo que não lhes pertence: a fachada, ou seja, a expressão pública do edifício. Não tiveram a cultura para entender os valores que subverteram: o trabalho de um autor e um património que é colectivo.
Dou comigo por vezes a caminhar por Lisboa e a tentar ver, por entre a predominância de marquises construídas à pressa e sem critério, os fragmentos que restam de uma arquitectura que noutros tempos teve, como disse no início desta crónica: uma estrutura, uma ordem, uma harmonia, um valor estético, e eventualmente, filosófico. Por isso, partilho inteiramente da indignação daquelas pessoas. E aguardo, com grande expectativa, a sentença deste Tribunal.
(*) Intervenção de José Mateus no programa “Na Ordem do Dia“