TSF 20 Jun 06
Em Portugal, não é preciso viajar muito para constatar que na maior parte das casas construídas nos últimos 70 anos está sempre presente um sentimento nostálgico. Sentimento esse que reflecte uma ideia distorcida de que a identidade se reforça sobretudo com recurso ao passado.Abundam então as casas pseudo-tradicionais, pseudo-rústicas, pseudo-século 17, pseudo-nada, num desfilar de pseudos que não é mais do que o reflexo de uma demissão generalizada de produzir cultura nova.Costumo dizer que, por ser arquitecto, sou um privilegiado.
A arquitectura é uma profissão extraordinária, porque tem o seu lado perene, sendo vivida, eventualmente por sucessivas gerações. Mas acima de tudo, pelo seu potencial transformador. Da cultura, do território, das cidades, e sempre da vida das pessoas, onde chega a ser um paliativo para os males do dia-a-dia.Evidentemente que esse impulso transformador vem da nossa capacidade de ver o mundo que nos rodeia e trabalhar a partir da sua compreensão.
Um dia terão perguntado ao escritor Jorge Luis Borges: quem é Borges? Ao que ele respondeu: “Não é ninguém. É os livros que leu, as pessoas que viu, as cidades que visitou.“A um certo nível ser arquitecto pode ser também assim. Aquilo que ele faz é na essência, uma reflexão sobre aquilo que o interpela quando exerce a sua curiosidade, o seu estudo, o seu olhar sobre o mundo. Afinal de contas, é como manter uma relação crítica, e não nostálgica, com a memória, ao ponto de produzir a partir dela um acto transformador, um impulso cultural reformador. Eduardo Chillida, conhecido arquitecto e artista plástico basco já falecido diria a propósito da dicotomia experiência e experimentação:“ Não creio muito na experiência. Penso que é conservadora. Acredito na percepção que é outra coisa. A percepção actua directamente no presente mas com um pé no futuro. A experiência faz precisamente o contrário: está no presente mas com um pé posto no passado.“Com curiosas intersecções com a percepção de Chillida, lembro também uma frase de Gonçalo Byrne, em defesa da arquitectura como acto transformador, partindo de reflexões sobre a intervenção em património histórico:
“Trata-se de saber pisar leve, mas, pisar integralmente. Com os olhos, com o tacto, com os ouvidos, com o sabor. Tem que se estar profundamente atento ao que se faz, mas mantendo um forte sentido de contemporaneidade e saber ver para além do olhar. Há um pouco a ideia de que a questão da identidade se alimenta exclusivamente do passado, o que considero profundamente errado. A identidade vive da memória mas tem que se estar continuamente a reinventar e a reconstruir. Porque senão ela não é uma identidade viva, é uma múmia.“ E, acrescentaria eu, às palavras de Byrne, com tudo o que isso encerra de trágico, para a cultura do nosso país.
(*) Intervenção de José Mateus no programa “Na Ordem do Dia“