Mar e Céu

Texto de Catherine Slessor

Este museu marítimo local funde elegantemente o particular com o universal.

ARX Portugal é uma entidade colectiva de arquitectos estabelecida em Lisboa em 1991 pelos irmãos José e Nuno Mateus, ambos licenciados na Universidade Técnica de Lisboa. Pela experiência de terem estudado e trabalhado fora do país (em Columbia e Houston, com Peter Eisenman e Daniel Libeskind), trouxeram um arrojo formal e textual para o seu trabalho, que é contudo temperado com uma subtil sensualidade e uma consciência de carácter inerente ao contexto português. Em comum com muitas práticas mais jovens, começaram com coisas pequenas – casas e interiores – mas foram passando gradualmente a contratos mais substanciais, enquanto ambos ensinaram, escreveram ou fizeram programas de TV. O seu maior e mais conhecido projecto até agora é o Museu Marítimo de Ílhavo, uma remodelação imaginativa de um museu local, que demonstra uma maturidade que lhes parece poder assegurar um reconhecimento futuro mais alargado.

Ílhavo, na costa central Portuguesa, tem uma longa história de barcos e pescadores. Durante séculos foi o lar para frotas pesqueiras de longo curso na sua ida à Terra Nova à pesca  do bacalhau e dos moliceiros que deslizam gentilmente à volta das salinas na Ria de Aveiro na procura de moluscos e algas. O museu marítimo original da cidade foi construido em 1970 e era tipico dessa era, nos seus arranjos funcionais de volumes fabris. Quando a ARX foi contratada para proporcionar ao município algo melhor, o seu impulso óbvio foi demolir a “reliquia” dos anos 70  e começar de novo, mas  os Fundos Comunitários restringiam-se a um projecto de renovação em vez de uma construção nova, necessitando por isso de uma resposta mais pragmática.

Esse pragmatismo é contudo, atravessado por uma sensibilidade poética. A velha estrutura de pilar/viga do edifício original delineiam a implantação de um complexo largamente expandido (quase o dobro em dimensão) coroado por uma cobertura irregular dentada que se levanta por detrás das casas suburbanas como barbatanas de peixe ou velas petrificadas. Mais explicitamente, o edifício é um evento no horizonte, como um navio no mar, com a sua colagem de longos volumes brancos, que se destacam de uma densa base escura coberta em tiras de lousa cor de carvão. A lousa preta recorda mais o breu dos barcos de trabalho  do que os matizes mais floridos das frotas pesqueiras, estabelecendo uma paleta minimal a dois tons de gesso branco, lousa preta e zinco cinzento que envolve as ondulações angulares da nova cobertura.

Recuado do lado nordeste da rua e perservando o alinhamento original, o edifício define um novo lugar público que deve algo às reconhecíveis manipulações topográficas de Eisenman, mas tudo é aqui executado com mais delicadeza, com bancos de madeira simples e dragadas de pedra colocados em planos inclinados construidos em aço corten. A parede de lousa preta demarca o limite do local e define no lado suoeste um pátio-jardim interior, paisagem de nova conotação Eisenmanesca. No coração deste pátio está um espelho de água, em torno do qual estão dispostas adequadamente as novas áreas, de forma a que a presença da água nunca esteja muito longe, lançando reflexos luminosos cintilantes através do interior.

Volumes novos emergem ou são ancorados na estrutura original – a Nova Sala da Ria de dupla altura com a sua impressionante colecção de barcos; um bloco administrativo com a biblioteca e cafetaria; e uma torre central para exposições temporárias. Este último é um volume alto, cubóide, embrulhado em lousa e localizado no espelho de água. A sua massa enigmática e escura transmite-nos a  desarmante impressão de flutuar sobre a água. Na fachada da rua secundária, a noroeste, a base de lousa é  pontuada por uma série de pórticos, tratados como eventos arquitectónicos, em portas laminadas em aço  e rampas de pedra.

Do átrio parte outra rampa, desta vez uma longa “perna de cão”, que conduz ao nível superior do espaço de exposição principal, ligando com fluidez os dois andares numa “promenade architectural” que oferece vistas exteriores sobre o espelho de água e o pátio. A luz é captada e reflectida no chão do amplo piso superior através da colisão mastigada das clarabóias dentadas, banhando os espaços de exposição numa delicada luminescência. Uma linguagem arquitectónica comum de paredes brancas e pavimentos de lousa negra unifica o interior, com toques sofisticados tais como a graciosa guarda de aço inox e o delicado mármore branco usado na rampa e escadaria.

Os espaços museográficos são fundos neutros para a exposição de objectos, que variam de cartas marítimas, maquetes e ferramentas para barcos muito maiores e velas, incluindo o “Faina Maior”, réplica do convés do navio bacalhoeiro que ocupa agora o piso térreo da sala de exposição principal. Silhuetas abstractas de marinheiros e pescadores fazem parte da colecção, dando a sensação de escala e animação humana a um quadro, mas sem o habitual e previsivel recurso a figuras de cera. Os arquitectos desenharam não só estes como também as elegantes vitrines expositivas de aço e vidro ou as peculiares letras inox no exterior. No conjunto, demonstram uma atenção cuidada mas não centrando a atenção sobre o pormenor, transformando e elevando o edifício num “Gesamtkunstwerk” de nuance refrescantemente contemporânea.

Ílhavo sempre teve um grande afecto pelo seu museu, apesar de ser uma modesta instituição local. A disseminação da vida marítima continua a desempenhar um papel importante no sentido identitário da região e a remodelação inteligente da ARX celebra e consolida este particular, enquanto aborda também temas mais elementares e imutáveis, de luz e penumbra, terra e água, mar e céu.

Ver: Museu Marítimo de Ílhavo