Uma arquitectura Intacta

Museu Marítimo de Ílhavo

Texto de Jorge Figueira

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Talvez, em última análise, não interesse exactamente o quê (ou a razão), mas como e em que condições, e com que alegria. Este pode ser o mote pragmático de alguns ateliers de arquitectura, como os ARX Portugal, que praticam aquilo que poderíamos chamar um novo optimismo ibérico.

Mansilla e Tuñón convocam John Cage, mais interessado nos movimentos geométricos das peças de xadrez do que em ganhar (ou perder) a Marcel Duchamp. Os movimentos das peças substituiriam a necessidade de um objectivo final, permitindo uma pragmática condição de felicidade: enquanto jogarmos somos felizes.

Nesse sentido, a arquitectura seria um tabuleiro de realizações e ao arquitecto caberia compreender todas as “peças” e procurar os melhores movimentos, a “melhor” solução sempre provisória.

O que nos envia para um pragmatismo rortyano; não aquele tecnocrático que decide em favor de alguns elementos, mas um outro que evidencia o reconhecimento de possibilidades, que alberga a diversidade, que escolhe tentativamente.

Esta deriva pragmática, se é permitida a antítese, toma o rosto humano do optimismo, inspira-se no esplendor das ideias e realizações civilizacionais. E reconhece-se na História; escavando; relendo; acrescentando.

Os ARX Portugal inscrevem-se neste plano. A sua abordagem é persuasiva e cativante e não aparenta ressentimentos (modernos, ideológicos ou temperamentais). Partindo muitas vezes de pretextos “conceptuais”, a sua aposta reside claramente na construção do edifício. Remetendo muitas vezes para uma visão “experimental”, mantêm em perspectiva o país onde trabalham. Querem construir com o cliente; dentro dos prazos previstos; dentro do orçamento. Dão como adquiridas questões centrais da arquitectura do século XX: o edifício tem que “funcionar”; tem que ser “bem construído”; tem que corresponder a uma avaliação singular do “programa” em determinado “sítio”.

Estes adquiridos permitem concentrar o projecto no movimento das “peças” sobre os diferentes “tabuleiros”, o que dá à arquitectura dos ARX um carácter experimental mas nunca totalmente afastado do “senso comum”. Dir-se-ia que opera dentro de um espaço progressivo que resulta da conquista de muitas batalhas – e da perca de muitas ilusões – anteriores.

É por isso que apesar do tempo – e da História – esta é uma arquitectura que redescobre uma intencionalidade intacta; que deixa antever um optimismo inato; que sugere a possibilidade de “começar de novo”.

É também uma arquitectura intacta no sentido de que não se assistem a clivagens entre a “prática” e a “teoria”; entre a maquete e o pormenor construtivo; entre o diagrama e a obra.
Todas as partes do processo – incluindo necessariamente a “mediatização” do projeco – conduzem à eficácia final do edifício.

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A entrada em cena dos ARX Portugal, no início dos anos 90, é um dos mais significativos acontecimentos do panorama recente da arquitectura portuguesa. Nuno Mateus e José Mateus introduziram na prática profissional alguns dos pressupostos mais relevantes da cultura arquitectónica dos últimos anos. Este aggiornamento deve-se à passagem de Nuno Mateus pelos ateliers de Peter Eisenman e Daniel Libeskind, mas o que importa sublinhar é o modo operativo como essas experiências vão ser recriadas. Pegando no exemplo de Eisenman, um dos autores mais intensamente polémicos e criativos das últimas décadas, podemos dizer que os ARX saberão testar algumas das suas ideias mais eminentemente projectuais. O conceito de “between”, por exemplo: a ideia de uma arquitectura de “deslocação”, que expressa transitoriedade e atopia quando tradicionalmente tem como função fixar um topos.
Este é um dos pressupostos de Eisenman que explicitamente os ARX vão experimentar. E, embora já tenham percorrido muitas etapas, está ainda presente no Museu enquanto motivação e matriz projectual: uma lógica sequencial na construção da forma que pretende “deslocar”, mais do que instituir fixamente.

Partindo da modulação estrutural do edifício preexistente – que permanece como “pegada”, sinal ou rasto – desenvolve-se um conjunto de adições volumétricas que permitem localizar o Museu. Mas não é a adição destes novos volumes, nem a permanência da estrutura do antigo pavilhão, que o define. O que define o Museu é o movimento sequencial, que será depois a própria razão e tema do percurso museográfico.

No entanto, aquilo que gostaria de sublinhar é a comovente convergência entre estes temas, que são a principal referência instrumental dos ARX, com um mais sereno, tangível e material entendimento da arquitectura, que podemos localizar nas próprias raízes da tradição moderna portuguesa.

Ou seja, no Museu Marítimo de Ílhavo, a exploração de sequencialidades, de corpos fragmentados, diagramáticos, converge numa espécie de gravidade local: o som seco dos volumes, a textura do reboco e da ardósia, e as suaves alusões náuticas permitem-nos ouvir o vento na planície.

O Museu Marítimo de Ílhavo resulta da prática de projecto, a que fiz referência – que tende a “descentrar” as formas e a acentuar as “falhas” – e da consideração de uma “firmitas” mais prosaica, mais convencional. Dir-se-ia que as ressonâncias conceptuais eisenmanianas se cruzam com o silêncio e o intimismo da experiência moderna portuguesa. A singularidade do Museu decorre dessa convergência: a reverberação de uma metodologia de projecto no sentido de um apuramento construtivo que confere aos materiais e aos jogos de luz uma expressão quase mediterrânica (a luz a que Le Corbusier aspirava…).

A manutenção da estrutura preexistente simultaneamente fixa o edifício à sua raiz e permite a deslocação sequencial. Apesar de obedecer a razões de ordem prática, envia-nos para uma espécie de apelo realista, sugere uma fixação do novo edifício à banalidade anterior, não o deixa escapar totalmente. É um pequeno fantasma estrutural que situa o edifício nas suas fundações primitivas. É o seu passado obscuro.

O projecto é resultado desta operação como eficazmente se pode verificar nos diagramas anexos. Dir-se-ia, aliás, que os diagramas desempenham aqui a função tradicional do “esquiço”, demonstrando o processo de operações consecutivas que levam ao projecto. Não se trata do percurso de adivinhação intuitiva do “esquiço”, mas antes da ponderação sequencial do esquema programático com que o projecto de arquitectura é demonstrável.

Esta “troca” é muito clara sobre o tipo de método projectual e os processos de comunicação com que os ARX estão comprometidos, re-centrando o trabalho de arquitectura em algo diagramatizável ao mesmo tempo que paradoxalmente ganha uma intensa complexidade construtiva.

Porque, evidentemente, ao diagrama pertence a lógica do edifício mas não a sua sensualidade e a sua texturalidade.
Talvez o mais impressionante no Museu seja esta espécie de deslizamento de uma lógica intelectual, processual, apertada, para uma expressão mais livre, experimentando a “autenticidade” dos materiais, a suave libertação em “lanternins”, o tratamento “pragmático” da relação com a envolvente, que se revelará determinante. Há um certo virtuosismo arquitectónico geralmente associado às referências fundamentais dos ARX, que aqui aparece mais filtrado, mais seco, mais circunstanciado.

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Numa primeira impressão, o Museu dá-se a ver como uma longa fachada rectilínea que preservera o alinhamento preexistente e oferece uma área aberta que João Gomes da Silva eficazmente trata como sinalização e espaço de acesso. A partir desta linha-limite, as estruturas do edifício desenvolvem-se para o interior do lote. Um pátio murado estabelece a fronteira interior, fixando plasticamente as linhas dos beirais e os motivos dos azulejos das moradias envolventes. É a relação entre os volumes acrescentados e este pátio que permite criar a interioridade onde sentimos a institucionalização do Museu.

Para lá desta extensão horizontal, que o pátio projecta e que um espelho de água, numa alusão ao programa, acrescenta, o edifício tem também insuspeitadas dimensões verticais.

A verticalidade elegante da “torre negra”, a cobertura orgânica da “grande sala da ria” e a sucessão de lanternins sobre a estrutura preexistente, remetem-nos para uma espécie de fuga para o céu, criando uma pequena porção de skyline na planura da Ria de Aveiro.
A volumetria recortada do edifício, e o trabalho com a luminosidade, que ela deixa antever, correspondem ao programa “museu” enquanto espaço moldado pela presença ou ausência da luz.

O pequeno troço deste skyline náutico assim adequadamente forjado é simultaneamente desconcertante mas também verosímil porque se refere a uma actividade local, familiar.

A longa parede exterior anuncia melancolicamente o programa que depois se desdobra em espaços verticalizados como “velas”, albergando os conteúdos do Museu. Completa-se assim uma relação suavemente alusiva entre a arquitectura e o próprio destino do edifício.

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No início do texto começei por falar, talvez inesperadamente, de pragmatismo. O Museu Marítimo de Ílhavo não corresponde a uma superação do “capitalismo” previsível das moradias envolventes, com a sua lógica individualista, “pequeno-burguesa”. É apenas uma ideia melhor.

É por isso que o edifício se implanta sem considerações de maior, mas também sem sobranceria, envolvendo as casas com suaves erupções de formas.

A sul, podemos observar o topo da “torre negra central” entre as gradeadas e barrocas constelações preexistentes. Na fachada principal, o volume da garagem do Museu abraça uma moradia, elevando necessariamente a sua futura avaliação.
Não se trata de um “diálogo”, muito menos de um esforço contextual. O Museu é uma constatação intacta. Não é uma arquitectura do “sítio”, porque isso pressuporia muito provavelmente estar “contra” aquele sítio.

Se seguirmos o travelling inicial do documentário Paisagens Invertidas, o edifício começa numa moradia que pontua uma rua inacabada. O Museu Marítimo de Ílhavo significa a implantação de uma melhor disciplina construtiva e formal; a continuação dessa rua está obrigada a seguir essa ordem e encantamento.

Ver: Museu Marítimo de Ílhavo